DOIS MISTÉRIOS: O MAL E O AMOR

Gustavo França

Existem dois mistérios: o mal e o amor. Um é o remédio para o outro.

Compreender a possibilidade de existência do mal é, talvez, a interrogação que mais vitalmente assole a mente humana desde sempre. Como é possível que o homem possa livremente tomar a decisão de fazer o mal, de destruir, de viver de ódio? Como é possível que, numa criação do Deus Sumamente Bom, tragédias vitimem inocentes, se alastre o sofrimento, convivamos com a dor e com a morte?

Caos, o deus grego primordial. Representava a desordem inicial.

A existência do mal parece ameaçar a soberania de um Deus-Pai bom e onipotente. Parece que não há Deus, ou que Ele é um pai autoritário e arbitrário, que Se regozija com os sofrimentos de Seus filhos, enquanto lhes impõe milhões de regras sem sentido. Parece que vivemos num mundo de desordem e de caos, em que somos, a todo o tempo, esmagados pela violência da aleatoriedade cósmica.

O fato é que o mal é efetivamente um mistério. Não é possível compreendê-lo totalmente, nem lhe dar uma explicação racional. O mal é, por sua própria definição, ausência de razão. O bem é a realização da reta razão de todas as coisas. O mal é uma revolta contra a razão de ser, uma violência contra o sentido e a lógica, uma aspiração a não ser, é o próprio contrassenso tornado ato na realidade.

A razão humana jamais será capaz de perscrutar o mal. Seguirá sendo um mistério a nos assombrar. Curiosamente, do mal podemos conhecer não o seu sentido, mas a sua solução. Não sabemos donde veio, mas podemos entender como dar fim ao seu reino de iniquidade.

A cura para o mal está no segundo mistério – o mistério do amor. O amor, entendido em seu sentido mais profundo, está igualmente muito além dos limites da razão humana. Aqui, não falamos de satisfação afetiva, de carinho físico, ou mesmo do companheirismo em diversas atividades nobres. O amor, em sua manifestação mais radical, é a disposição voluntária de esvaziar-se de si mesmo para pôr-se a serviço do bem do outro. Amor é o sacrifício desinteressado, é a doação de si mesmo, até a última gota de sangue, até o fundo das faculdades da alma humana.

Santa Teresa de Calcutá

Que alguém possa amar sem nenhuma perspectiva de benefício em troca, que possa fazer sempre o bem a quem está ao lado, sem indagar de quem se trata, que possa compadecer-se doridamente até mesmo da escória, daqueles que ninguém quer tocar, dos mais abjetos criminosos, dos loucos, dos desenganados, que possa escolher uma vida de imolado serviço, recheada de dores e de dificuldades, deixando de lado confortos, glórias e bens, é algo que sempre escapará ao intelecto humano ordinário.

O amor vai além da medida da razão. O amor não se detém no razoável. O amor perdoa o imperdoável. Não paga o mal com mal, mas insiste em estender a mão ao que lhe cospe e o apunhala. Não só cumpre o seu dever, mas dá cem vezes mais do que o contrato lhe exige. Não reclama seus direitos legítimos, mas renuncia ao seu por justiça para dá-lo ao que não tem. O amor faz o que sequer cogita o homem bem-intencionado, que, às vezes, lhe provoca mesmo asco ou susto, tão fora da lógica é aquele sacrifício radical, que nenhum dividendo gera exceto a sua própria magnitude.

Que um jovem rico possa despir-se de tudo que possui, para viver entre os pobres, como um mendigo a mais; que uma senhorita prefira viver uma vida inteira internada num leprosário na Índia, privada de sono e de boa comida; que uma testemunha de sucessivos massacres sangrentos possa estender a mão a um general nazista e confortá-lo na prisão soa ao mundo como um despropósito, um fundamentalismo irracional.

Mesmo os melhores homens do mundo sem a graça do Evangelho não puderam vislumbrar o amor. Nem os grandes filósofos de Atenas, nem os mais civilizados jurisconsultos romanos foram capazes de entender a caridade radical, nua, brutal, desinteressada. O amor é e continuará sendo escândalo para os judeus, loucura para os pagãos.

O amor é o remédio para o mal porque rompe a sua lógica e instala um novo reino. Enquanto tentamos nos defender e nos fortalecer para enfrentar o mal, enquanto tentamos nos blindar com uma violência para bloquear aquela feita contra nós, permanecemos presa das forças humanas e naturais, que podem nos atacar sem que saibamos donde vêm. Na ordem natural, sempre há alguém mais forte. Na disputa de poder natural, somos ridiculamente derrubados até por um microscópico vírus, somos sempre pequenos diante da revolta de uma montanha abarrotada de lava ou de fonte inesgotável d’água a cair do céu.

O amor encerra essa lógica de lutas sem fim, de superação inevitável do mais fraco pelo mais forte ou pelo mero acaso. O amor faz da dor e do sofrimento seu próprio material. Transforma-os em sacrifício e, com isso, dá-lhes novo sentido. O amor não reage à violência, mas entrega-se a ela como cordeiro levado ao matadouro. Aceita sofrer para poupar o outro, entrega de graça o que lhe querem tirar à força.

No amor, toda a brutal ausência de sentido de sofrimento, da dor de inocentes e da morte se enche de um sentido que tudo renova. O sofrimento agora é um sacrifício voluntário, que destrói o mal ao transformá-lo em instrumento do bem. Aquele que ama faz de sua própria dor o bem do outro, aceita a aniquilação de sua pessoa para o serviço do próximo. O mal perde, então, seu aguilhão. Esvazia-se seu poder de destruir e de ferir. Recai num destino ridículo: o de servir ao propósito da mais elevada caridade, de fazer-se a própria razão da glorificação daquilo que almejava destruir.

Diante do amor, o mal já nada pode exatamente porque toda a dor que ele é capaz de infligir, nas mãos da pessoa que ama, se torna ocasião de multiplicar a bondade, de oferecer-se mais radicalmente em gozosa imolação para a expiação e salvação desta humanidade chagada.

Sempre recomendo, para ilustrar essa economia dos dois mistérios, o grande filme “A árvore da vida”, de Terrence Malick. Com uma linguagem profundamente poética, essa obra nos leva a passear por essa angustiante interrogação pelo porquê do mal, que tanto nos atormenta e nos deixa perplexos.

O mal não consegue ser explicado, por mais que os personagens quebrem a cabeça perguntando à sua própria consciência e bradando a um céu aparentemente silente. Entretanto, o filme se estrutura na dualidade de duas vias: a da natureza e a da graça. Na via da natureza, tentamos fazer-nos fortes, para enfrentar a violência e a competição. É inútil: somos inevitavelmente esmagados pela desgraça e pela iniquidade dos maus, mais cedo ou mais tarde.

O segredo está na descoberta da via da graça. Nesse caminho, abrimos mão de toda a glória pessoal. Esvaziamo-nos de todo o egoísmo numa simples disposição de sorrir, de oferecer o carinho, o bem-querer e o serviço a todos, em cada esquina, sem distinção de pessoas. Se a nada de nosso estamos apegados, a maldade já não pode nos atingir. Tudo o que nos poderia ser arrancado já oferecemos gratuitamente, sem nada esperar, sem nada desejar que esta mesma vida de doação que, ao esvaziar-nos radicalmente tudo, nos preenche de um modo que nenhuma força ou bem natural é capaz. O amor ilumina-nos e nos torna partes de uma vida renovada, em que a dor e a morte não têm lugar e em que a felicidade é plena e eterna, porque fincada naquilo que não pode ser tirado. Só há felicidade na decisão livre de renunciar a ela.

Só podemos ser fortes quando somos fracos. Só vivemos verdadeiramente quando entregamos nossa vida por nossos irmãos.

(texto do autor publicado no FB).

Tags , , .Adicionar aos favoritos o Link permanente.

Deixe um comentário