MAIS REAL QUE A PEDRA. CONSIDERAÇÕES SOBRE FÁTIMA

José Maria C. S. André

Correu nestes dias (2017), nos meios de comunicação social, uma polêmica muito «século XIX», acerca da natureza das aparições de Fátima. Uns 100 anos antes de Nossa Senhora aparecer em Fátima, estava no auge o esforço de classificação teológica, como se houvesse o intuito de fazer concorrência à matemática. Os manuais de doutrina cristã muito «século XIX» pareciam listas meticulosas de virtudes, de vícios, de graças …enumerações de tudo! Felizmente, essa época chegou ao fim e não há entusiasmo para repetir a experiência. Fátima, que pertence já ao século XX, fica a anos-luz das alíneas de um catálogo.

Em primeiro lugar, apresenta-se com uma exigência invulgar. Não propõe uma religião anti-stress, em ritmo «Zen», mas fala de realidades extremas, como a vida e a morte, o Inferno e o Paraíso, num desafio sublime: «quereis oferecer-vos a vós mesmos?…», «quereis consolar o vosso Deus?…». Até onde vai o radicalismo do vosso amor?

Em face disto, discutir a classificação, ou as circunstâncias é ficar completamente aquém.

As aparições põem diante de nós um outro mundo, tão real como aquele que respiramos, mas diferente. Os Anjos não têm corpo. No entanto, os Pastorinhos viram e ouviram um Anjo. Em Fátima, em 1917, também outras pessoas, sem terem visto o Anjo ou Nossa Senhora, viram brilhos invulgares, viram os ramos das árvores vergar-se ao peso de um corpo invisível. Como é ver um Anjo? Explicar demasiado só acrescenta palavras à constatação.

Os corpos gloriosos têm igualmente o seu próprio mistério. A Bíblia apresenta-nos as aparições de Jesus ressuscitado aos discípulos e o mistério desses encontros. Algumas vezes, Jesus atravessou as paredes de uma casa fechada. Outras, tinha o aspecto habitual… mas era diferente. Pensaram numa fantasia e Jesus teve de comer com eles para lhes mostrar que era real. Para não parecer talvez um sósia estranho, foi preciso Jesus mostrar-lhes as feridas da crucifixão. Depois de uma pescaria impressionante, os apóstolos reconheceram que era Ele, mas não exatamente como antes, como quando se revê uma pessoa depois de muitos anos. Os dois discípulos de Emaús acompanham-no uma tarde inteira e só ao jantar O reconheceram e – de repente –, quando o reconhecem, desaparece da sua presença. Maria Madalena, dirige a palavra a Jesus junto do sepulcro, mas só percebe com quem está a falar quando Lhe ouve a voz e Jesus a chama pelo nome. O corpo ressuscitado de Jesus ou o corpo de Maria mudaram, mas não deixaram de ser reais.

S. Paulo encontrou uma maneira acertada de falar da ressurreição: semeia-se nesta terra uma semente terrena e encontraremos no Céu uma árvore frondosa. A árvore e a semente são a mesma planta, apesar de não parecerem. Quando ressuscitarmos continuaremos a ser nós próprios, ainda que agora não se consiga imaginar como seremos. Cada um é distinto em bebé, em adolescente, ou na idade adulta, mas é sempre a mesma pessoa. Assim também no Céu.

O real não se esgota no comum e Deus pode alargar a realidade que a vista alcança. Habitualmente, não vemos Anjos, nem vemos Jesus ou os Santos, tal como os Pastorinhos de Fátima também não viam habitualmente senão realidades comuns. No entanto, por momentos, apareceu-lhes o que não costuma ver-se nem ouvir-se.

Nas aparições de Fátima, Nossa Senhora brilha, como uma luz transparente, de uma beleza deslumbrante. Se é tão difícil descrever uma paisagem ou uma fisionomia comum, quanto mais difícil é falar do Céu e de pessoas que ressuscitaram.

Às vezes, proponho-me o desafio descrever aquele grupo escultórico que está no meio das rochas, na Loca do Cabeço, representando o Anjo e os três Pastorinhos. É pedra, bem sei, mas as figuras transparecem uma tensão calma, uma concentração interior que não cabem nas minhas palavras. Onde é que a Maria Amélia Carvalheira foi buscar a inspiração? Só uma escultora genial consegue captar uma realidade tão complexa e «extrair vida» de um bloco de pedra. Depois, tento imaginar a realidade. Porque, a realidade do Anjo e de Nossa Senhora é de ainda outra ordem, nada se lhe compara em brilho, em beleza, ou em importância. Se fosse imaginação, a mensagem de Fátima seria parecida ao relaxamento da música «Zen», mas é mais real que a pedra.

José Maria C. S. André é Professor no Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa

Nota: o subtítulo é do site claravalcister

Fonte: Spedeus.blogspot.com  21 de maio de 2019

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