NA CASA DO PAI

Larissa Autran

Mais uma vez, a filha à casa retorna. Abro a porta, puxando a mala. Na sala, o cheiro da casa que reconheço como meu ninho. As paredes descascadas, o piso sofrido pela ação do tempo. Respiro fundo, voz embargada, olhos marejados, e aquela velha emoção pela qual sou tomada sempre que abraço a minha velha mãe que me acolhe em seu peito e brada fortemente “Minha filha!”.

Acomodo a mala no meu antigo quarto. Quantos sonhos, angústias, conquistas foram silenciosamente testemunhadas por estas paredes. Pela janela, olho para o céu, continua o mesmo azul lindo com nuvens de algodão. Tiro os sapatos, pés descalços para me nutrir da energia da minha casa. Minha casa, apesar de não morar mais aqui, apesar de não ser tão presente quanto gostaria. Minha casa, meu santuário da felicidade, meu porto seguro.

Respiro fundo, novamente. Saio em direção à sala. Sento-me no sofá de bambu com almofadas caprichosamente feitas por mainha. Olho ao meu redor e revisito as maravilhosas lembranças que cada objeto me traz. Os livros do painho, um intelectual incansável. Na estante, cobertos por uma tênue camada de poeira, todos os seus livros. Passo o mão sobre eles, um leve espirro, a poesia e a poeira do tempo fazem companhia ao que painho considerava seu maior tesouro: sua sabedoria. Lembrei de quando saía e virava a noite nas festas e, ao chegar, ele sempre dizia: ” Vai perder a noite lendo um livro, você ganha mais”. Eu sorria sem jeito e ia dormir…

Painho lia de dia, lia de noite, lia o tempo todo quando estava livre dos afazeres. Dizia sempre a mim que não tínhamos nascido em berço de ouro e que teríamos que estudar e trabalhar para conquistar nosso lugar no mundo, mas que maior herança que podia deixar era o conhecimento. E completava seu sábio discurso dizendo: “Tá aqui, tudo o que vocês precisam para a vida: filosofia, física, psicologia, sexologia, literatura, arte, façam bom proveito porque isso aqui será sempre a maior riqueza e, talvez, a única que vocês vão levar desta vida”.

Ao lado dos livros, a estante com suas esculturas. Olho minuciosamente para cada obra de arte. Cada detalhe lapidado com maestria, uma incrível mescla de conhecimento de anatomia, das técnicas para uso do barro, da resina, da pedra e da madeira, aliados a um talento e uma sensibilidade capaz de surpreender até quem já entende de arte.

Rapidamente, olho para o lado e localizo a estante com sua velha radiola. Embaixo, toda a sua coleção de música clássica, uma verdadeira relíquia. Raridades de Bach, Mozart, Bethoven, Suppé, Handel,Vivaldi, Albinoni, Liszt, Tchaikovisky, Chopin…Aperto um dos discos contra o peito, direciono meus pensamentos ao meu velho e agradeço mentalmente os dias em que pude estar ao seu lado curtindo suas músicas. A casa era invadida por uma paz imensurável, os acordes do violino e do piano consumiam aqueles instantes com meu velho. E eu, como filha devota que sempre fui, ouvia atentamente ele explicar sobre a história de cada compositor e cada composição. E era invadida por um orgulho feroz e uma gratidão avassaladora por Deus me permitir viver aquele momento, pois sempre pensei na hora da sua partida e sabia que tinha a missão de ser a melhor filha que pudesse e usufruir da beleza de ter ele como Pai.

Ele se foi, partiu como queria, dormindo, sem dor, sem sofrimento. O coração, tão acolhedor, tão cheio de amor, tão devoto da caridade, parou e, como ele, sempre dizia: “Missão cumprida!”.

E que bela missão! Tudo exposto nesta sala, para quem quiser ver. E para quem tiver a sensibilidade de encontrar entre tantas coisas antigas a história de um homem e uma mulher que souberam construir, com maestria, um verdadeiro Lar. A casa do Pai.

 

 

Larissa Autran é  professora de Língua Portuguesa para estrangeiros na PSF, no colégio de São Bento em São Paulo.

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