
Um dia desses Valter me trouxe o Poema em linha reta para que conversássemos sobre ele. Ele esteve em um convívio com amigos e achou interessante uma reflexão a dois. A primeira vez que tive contato com esse poema do heterônimo de Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, era bem jovem e estava cursando pela primeira vez, o curso de Letras. Anos mais tarde, ao cursar Letras pela segunda vez tive uma impressão diferente.
O tempo passou. Eu também passei. Passei por vários caminhos, por pessoas diferentes, muitas alegrias, algumas tristezas, sonhos realizados e outros abandonados. Tudo o que lemos pode ser relido várias vezes durante nossa vida e, em cada vez, o resultado será diferente. Isto porque não somos o que éramos. As pessoas que passam por nossa vida nos ensinam de duas maneiras: a ser e a não ser. A escolha é de nossa inteira responsabilidade, portanto, vamos ver, depois de muitos anos, o que o Poema em linha reta tem a me dizer no dia hoje.
Poema em linha reta
Álvaro de Campos

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das
etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Vamos dar uma pausa aqui para refletir sobre esta primeira parte.
Veio à minha mente que nas redes sociais todo mundo parece feliz, relacionamentos perfeitos, alegria e sorrisos abundantes. Todos passeiam, descansam, se divertem. Comem, bebem, compram, gastam, enfim, vidas pretensamente perfeitas e invejáveis. Ninguém sairá tirando fotos do seu trabalho estressante, dos momentos de nervosismo no trânsito, da reação ruim ao ver que a comida ficou salgada ou que o bolo não cresceu e ficou duro como pedra. Ninguém registrará o momento da demissão inesperada, da conta bancária vermelha ou do término que parecia impossível.
A diferença é que nós sabemos que todo mundo é assim. Todos nós, em algum momento, fomos mesquinhos e arrogantes ou tivemos que nos calar de forma submissa e ridícula. Entretanto, não somos motivo de riso para qualquer um, nem pedimos emprestado com a intenção de não pagar. Somos diferentes do Eu lírico pessimista e solitário, sem amigos e sem esperança. Somos diferentes ou, pelo menos, temos a possibilidade de ser.
Vamos um pouco mais adiante no Poema…

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma covardia!
Não, são todos o Ideal, se os ouço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
Nesta segunda parte do poema eu me vi mais longe do Eu lírico do que estava antes. Sim! Eu ouvi, nesses anos que se passaram, pessoas que confessaram seus pecados, seus erros, suas infâmias. Pessoas que assim como eu, já tiveram seus momentos de mesquinhez e vileza, mas contavam, com serenidade e alegria, como haviam deixado esse modo de agir. Eu tive a honra de conhecer pessoas verdadeiramente boas. Não eram príncipes nem semideuses. Eram pessoas comuns que viviam suas vidas de forma comum, mas que sabiam ser filhos de Deus e aí morava toda a diferença.
São pessoas que lutam diariamente para melhorar no modo de agir, pensar, fazer, responder. Pessoas que caem e se levantam porque sabem que não estão sozinhas.
Aí eu pensei que tenho muita sorte por ter tanta gente boa em minha vida. Gente que dá exemplo de bondade, que pensa nos outros antes de pensar em si mesmo, que doa seu tempo com alegria, que vive para fazer o bem e espalhar, por este mundo afora, que todos nós fomos chamados à santidade. Todos nós fomos chamados ao Céu. Que coisa incrivelmente diferente do que vive nosso pobre Eu lírico.
Não preciso ser literalmente vil. Eu posso mudar o curso da minha história. Como diz William Thatcher, no filme Coração de Cavaleiro, “um homem pode mudar as suas estrelas”. Isto não é fácil, nem rápido. Às vezes, pode ser doloroso, mas a certeza da felicidade final é o que vale a pena.

Só para comentar o título Poema em linha reta, noto aqui mais um momento de pessimismo. Certa vez ao conversar com a mãe de um aluno, falávamos sobre os batimentos cardíacos e ela trouxe uma imagem lindíssima que me marcou profundamente. Os batimentos cardíacos são feitos de altos e baixos, quando surge a linha reta é sinal que a pessoa morreu. Portanto, viva os altos e baixos. São sinal de vida e enquanto há vida, há esperança.

Se iniciamos com o heterônimo Álvaro de Campos, vamos terminar nossa reflexão com o próprio Fernando Pessoa num lindo verso de “Mar Português”: “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”.
Coragem! Olhe ao seu redor e veja quanta gente boa há pra você fazer amizade, seguir e aprender a viver de uma forma melhor.