HUGO DE SÃO VÍTOR (1096-1141)

NA RETÓRICA TRADICIONALISTA CONTEMPORÂNEA

Carlile Lanzieri Júnior

O nacionalismo que cortou a Europa do século XIX e que logo se espalhou por várias partes do mundo criou uma profusão de heróis donos de histórias de superação e dedicação que deveriam servir de inspiração para todas as pessoas. Nesse contexto, o medievo serviu como fonte de referências históricas exemplares com personagens próprios e eventos fundadores. Ao tentar à época se mostrar revigorado sob as bênçãos do papado, o catolicismo encontrou em Tomás de Aquino (1225-1274) um exemplo de personagem mítico cujos ensinamentos deveriam se converter em esteios para a educação e materialização de uma advertência pedagógica: apartar-se de assuntos políticos e econômicos era fundamental. Depois de mais de um século de revoluções liberais, a Igreja desejava se expor à sociedade das primeiras décadas do século XX como uma alternativa institucional de ordem, razão e serenidade.

A diferença que atualmente existe para essas situações oriundas de um passado um pouco mais distante é que a Internet e as redes sociais multiplicaram o poder de ação e penetração dessas histórias cujas análises se aglutinam em torno do termo “neomedievalismo”. Andrew B. R. Elliott chamou a atenção para a existência do que definiu como “medievalismo banal”, conceito cujo foco são as apropriações e representações deliberadamente inapropriadas da Idade Média. Para Elliott, essas manifestações devem ser analisadas tendo como referência o que trazem em si acopladas e sua recepção. E se o medievalismo banal nos serve de referência, a alt history e o advento de um novo fim da História apontados por Loui Dean Valencia-García também estão dispostos bem no centro de nossa mesa de trabalho. A antiga tese de Francis Fukuyama foi revisitada ao longo da última década a ganhar ares fatalistas como se a suposta era de degenerescência na qual vivemos estivesse a acabar dando lugar a outra baseada em valores tradicionais, dentre eles a família, a pátria e a religião.

A todos esses ingredientes, acrescentamos a emergência do pensamento tradicionalista que se faz na esteira do crescimento da direita populista em diferentes lugares do mundo. De acordo com Benjamin R. Teitelbaum, em sua origem, o tradicionalismo é uma escola espiritual filosófica e política cujos adeptos creem que a humanidade está no final de um longo ciclo de declínio e que este vai ser concluído com a destruição final e o posterior renascimento de uma nova era sob novas lideranças políticas, intelectuais e espirituais. Voltar no tempo é o que os tradicionalistas desejam, por isso o apego ao medievo por eles manifesto, ou pelo menos a uma estética medieval que se faz com ares devocionais a algo que consideram ter sido belo e harmonioso. Dos eventos individuais e coletivos, passando pelos conceitos, chegamos ao objeto de nossa proposta: o mestre Hugo de São Vítor e o seu Didascalicon. Personagem e obra cada vez mais presentes entre os círculos tradicionalistas.

Hugo de São Vítor

Nascido na região da Saxônia, Hugo foi um dos grandes nomes ligados à abadia de São Vítor, em Paris, lugar onde permaneceu de 1115 até a sua morte. Sua obra mais conhecida é o Didascalicon. Dividido em seis livros cuja temática central é a elevação do homem pela disciplina nos estudos, o Didascalicon data do ano de 1121. Durante muito tempo, à disposição do público brasileiro, havia uma única edição bilíngue da referida obra. Na segunda metade da última década, este cenário mudou. A renovação desse interesse também pode ser observada na existência de diversos cursos de introdução à pedagogia vitorina e na criação do Instituto Hugo de São Vítor. No que se refere a esse instituto e aos variados serviços que oferece, os próprios fundadores-administradores explicam as suas escolhas em vídeos encontrados no YouTube. Nas linhas e entrelinhas de cada um, o apego de viés ideológico ao medievo parece negligenciar o cosmopolitismo do próprio Hugo no Didascalicone que também contradiz a verticalização cultural proposta por pessoas que desejam resgatar sua pedagogia e aplica-la hoje. O interesse pela “terra estrangeira” proposto por Hugo foi uma das características do renascimento do século XII e está imiscuído nos ensinamentos de diversos outros mestres daquele período. Essa busca também indica a existência de um mundo em transformação no qual as iniciativas dos jovens estudantes a procura de conhecimento estavam a ganhar força.

De forma complementar, não podemos deixar de reafirmar o fato de que os que possuem uma visão tão idealizada acerca da educação no medievo não conseguem compreender com a devida profundidade os problemas de nosso sistema educacional. Também não enxergam (ou parecem não querer enxergar) que boa parte dos problemas desse sistema está na sua constante simplificação para atender “demandas do mercado” a vender uma perigosa educação liberal tecnicista aquecida sob o manto retórico do empreendedorismo. Ao defender a prática do homeschooling e formas de ensino similares tomando Hugo de São Vítor como fiador histórico e moral, esses críticos parecem mais desejar vender os próprios produtos que ir ao cerne da questão. Com efeito, a suposta revalorização da cultura ocidental judaico-cristã baseada no tripé filosofia grega, direito romano e cristianismo presente na retórica tradicionalista tem em si um sentido difusionista do conhecimento como se nada de melhor existisse em outras culturas, inclusive a nossa. Enfim, semelhanças com o sentimento nacionalista que novamente cresce nos quatro cantos da Europa e além não são meras coincidências.

BIBLIOGRAFIA

ELLIOTT, Andrew B. R. Medievalism, politics and mass media: appropriating the Middle Ages in the twenty-first century. Cambridge: D. S. Brewer, 2017.

FALCONIERI, Tommaso di Carpegna. The militant Middle Ages: contemporary politics between new barbarians and new crusaders. Leiden/Boston: Brill, 2019.

LANZIERI JÚNIOR, Carlile. Cavaleiros de cola, papel e plástico: sobre os usos do passado medieval na contemporaneidade. Campinas: D7 Livros, 2021.

TEITELBAUM, Benjamin R. Guerra pela eternidade: o retorno do tradicionalismo e a ascensão da direita populista. Campinas: Unicamp, 2020.

Sobre o autor:  http://lattes.cnpq.br/4540469424960429

FONTE:

https://sacralidadesmedievais.com/textos-semanais/f/hugo-de-s%C3%A3o-v%C3%ADtor-1096-1141

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2 respostas para HUGO DE SÃO VÍTOR (1096-1141)

  1. Prezado Mario Lucas Carbonera. Saudações.

    O site claravalcister fica feliz por vocês terem concordado em comentar o artigo do prof. Carlile Lanzieri Jr. sobre Hugo de São Vitor. Se o Instituto foi criticado pelo historiador nada melhor do que ler sua defesa.

    Para deixar mais claro ele não faz parte dos quadros do claravalcister. Vamos procurar conhece-lo.

    Tudo de bom para os senhores. Sucesso em seus empreendimentos.

    Atenciosamente, Valter de Oliveira

  2. Mário Lucas Carbonera diz:

    Olá, sou do Instituto Hugo de São Vítor. Vimos a sua postagem e vamos pontuar algumas coisas. De fato, temos apreço por grande parte do arcabouço e por técnicas de ensino antigas; do contrário não teríamos como patrono um mestre do Sec. XII, mas sim algum moderno como Piaget et caterva. Porém, discordamos da sua descrição, quando parece afirmar que nos fechamos para qualquer coisa que não seja medieval. De fato não participamos desse movimento “medievalista”, fazemos críticas a ele. Basta dar uma olhada um pouco mais detida em nosso material. Volta e meia, assumimos a defesa de autores humanistas e do próprio movimento humanista como um todo, elogiamos os jesuítas e até Comênio, um dos mais execrados pelos referidos medievalistas.
    Se você viesse assistir a uma das aulas do nosso projeto-piloto, não se depararia com uma sala de aula “medieval” nem de longe, pois sequer rejeitamos coisas modernas em nossa pedagogia. Aliás, somos criticados por usarmos o método natural para ensino do latim, que é tido por alguns na conta de modernizante.
    Enfim, tudo isso dizemos não para nos defender, mas para restaurar a justiça e para que você tenha melhores subsídios em sua análise. Realmente, se queria escolher algum Instituto católico para exemplo de medievalismo banal, a escolha não foi das mais felizes.

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