Roberto de Mattei: perguntas e respostas sobre a pandemia e as vacinas

Roberto de Mattei

Vivemos em um tempo de confusão e, o que é ainda mais dramático, essa confusão prevalece mesmo entre os católicos mais fiéis, que aderem à Tradição da Igreja.

Entre esses católicos, nesta época de pandemia, duas questões se repetem:

1) É moralmente lícito usar vacinas contra COVID-19 que usam linhagens celulares provenientes de fetos abortados? 

2) Além da licitude dessas vacinas, é aconselhável recebê-las, neste momento em que ainda não se conhecem todos os riscos que representam para a saúde?

Num estudo que acaba de ser publicado pela Edizione Fiducia , tentei responder de forma articulada à primeira pergunta. Este texto destina-se, sobretudo, a quem deseja aprender mais sobre o problema das vacinas anti-COVID à luz da teologia e da filosofia moral. Há, no entanto, uma resposta mais acessível para o católico de bom senso, e é esta: é lícito ser vacinado porque a Igreja o assegura, por meio de seu órgão doutrinal de maior autoridade, a Congregação para a Doutrina da fé. No dia 21 de dezembro de 2020, a Congregação se manifestou com um documento conciso que remete a outro documento mais abrangente: Sobre a Dignidade da Pessoa ,  datado de 8 de setembro de 2008.

Os pronunciamentos da Congregação para a Doutrina da Fé são a voz da Igreja docente, diante da qual leigos e sacerdotes podem legitimamente expressar dúvidas, mas sempre com respeito filial, para que não corram o risco de justificar todo tipo de dissidência, como o que vemos acontecer neste momento contra a proibição, por parte da mesma Congregação, de se conceder bênçãos às uniões homossexuais.

É necessário lembrar que a intransigência moral da Igreja nada tem a ver com certo “rigorismo” que surge de tempos em tempos na história da Igreja. No século III, o bispo Novaciano (220-258), em uma disputa com Roma, sustentava que a idolatria era um pecado imperdoável, e os culpados desse pecado, que foram chamados de lapsi (decaídos), não poderiam ser readmitidos à Sagrada Comunhão, mesmo que, após o sacrifício aos ídolos, se arrependessem. Novaciano tornou-se um antipapa, em oposição ao Papa São Cornélio (180-253) e foi apoiado por São Cipriano (210-225), bispo de Cartago que, por sua vez, se opôs ao Papa seguinte, Santo Estêvão I (254-257), introduzindo em sua diocese de Cartago o uso de rebatizar hereges. Durante o século seguinte, a visão de São Cipriano foi radicalizada pelos donatistas, que negaram a validade também dos sacramentos conferidos por pecadores públicos. Contra eles, Santo Agostinho brandiu brilhantemente sua pena. (1)

Essas ideias rigoristas foram em parte retomadas no século XI por alguns prelados como Umberto da Silva Cândida, que negou a validade das ordens de padres imorais que compravam e vendiam privilégios eclesiásticos ou viviam em crassa imoralidade. São Pedro Damião (1007-1072), ao mesmo tempo que rotulava a simonia como heresia (…), insistia que as ordens daqueles padres heréticos eram válidas. O Concílio de Trento no século 16 confirmou que essas ordens eram de fato válidas.

Estes exemplos deveriam ser motivo de reflexão por parte de quem hoje nega a licenciosidade moral das vacinas, cuja liceidade tem sido reiteradamente confirmada pela Igreja, na qual se confirmam todos os problemas específicos que envolvem esta questão particular (2).

A segunda questão é de ordem prática: as vacinas anti-COVID são verdadeiramente eficazes contra a pandemia e estão isentas de risco de danos colaterais a longo prazo? A resposta a esta pergunta é que não sabemos, nem as autoridades políticas e de saúde sabem ao certo. O certo é que as vítimas da COVID não são uma “ficção”, mas uma realidade trágica. A partir dos dados compilados da Universidade John Hopkins, até 4 de março, mais de 2.700.000 pessoas morreram e mais de 124 milhões de casos foram confirmados no mundo desde o início da pandemia.

Pode-se argumentar longamente sobre aqueles que morreram “por causa” de COVID ou “com” COVID, abordando a alegação de que o número de mortes atribuídas ao Corona vírus é maior do que realmente é o caso. Resta o caso que, com ou sem COVID, 2020 foi um ano recorde para o número de mortes em todo o mundo. De acordo com o Eurostat, que recolhe dados produzidos pelos institutos nacionais de estatística dos vários países da União Europeia, verificou-se que na UE entre março e dezembro de 2020 ocorreram 580.000 mortes a mais em comparação com o mesmo período de 2016-2019. Na Itália, ocorreram 90.000 mortes a mais, em relação à média dos cinco anos anteriores.

A ciência médica está tentando derrotar esse vírus com o uso de vacinas, mas ainda não se sabe se isso terá sucesso. A possibilidade de fracasso apontaria apenas a impotência do establishment médico para deter o Corona vírus e, portanto, a natureza da pandemia como um castigo. Mas o progresso da ciência e da medicina se dá por meio de erros de diagnósticos e remédios, sobretudo quando se trata de novas doenças de origem desconhecida. As autoridades políticas e sanitárias que há um ano eram acusadas de terem criado artificialmente o estado de emergência, são hoje acusadas de quererem resolver o estado de emergência através de um programa de vacinação “genocida”. Mas se se quer destruir a humanidade, por que não deixar a doença correr solta sem a necessidade de recorrer a vacinas que, no caso da Grã-Bretanha mostra, reduzir e não piorar o número de mortes em um determinado país? Que sentido faria tentar salvar uma população que quer se destruir?

Nessa situação de confusão cognitiva, quanto às opções pró e contra a vacina, é preciso evitar confundir o caso individual com o do público ou do coletivo. Ao nível do indivíduo, cada um é livre para fazer uma análise custo-benefício, ponderando diversos elementos: a idade, a saúde física, os conselhos do seu médico pessoal, a sua atitude pessoal perante a doença e a morte. Mas os governos, sejam eles bons ou maus, têm como propósito o bem-estar do coletivo. Quando fazem sua análise de custo-benefício, não o fazem em termos individuais, mas em relação ao coletivo. A lei que é justa não é uma lei que tem efeito sobre todos os indivíduos, mas sim a lei que é feita para todas as pessoas. A aplicação de tal lei com respeito ao indivíduo é apenas acidental. Sob esse aspecto, se no mês de março na Itália ocorreram mais de 500 mortes por dia, essas vítimas foram mortas pelo COVID, não por vacinas. Parece lógico que o governo esteja aconselhando a obtenção da vacina, mesmo que a implementação desse plano se mostre difícil e confusa. Todos, no final das contas, são livres para decidir aceitar ou recusar a vacina oferecida pelo governo.

Há um aspecto final que deve ser abordado. Há um ano, quem afirmava que a pandemia não era ficção, mas sim realidade, foi acusado pelos chamados “negacionistas” de pertencer ao “partido da saúde”, constituído por aqueles que se deixaram condicionar pelo alarmismo da mass mídia. Mas aqueles que ontem criticavam a preocupação com a saúde, hoje estão criando um novo partido ou movimento que se opõe às vacinas em nome da proteção da própria saúde. Para os “negacionistas” de ontem, que hoje são os “antivacionistas”, a preocupação com a própria saúde passou a ser o mais importante, a ponto de construir novas teorias morais para demonstrar que as vacinas são moralmente ilícitas.

Na verdade, o único “partido” pelo qual vale a pena lutar é o “partido” de Deus. Nossa vida está em Suas mãos, e será Ele quem, após ter permitido a pandemia, nos mostrará se é da Sua vontade ou não que a pandemia seja vencida pela vacina.

Em todo o caso, adoremos Sua vontade.

Nota:

  1. Na verdade, na época, a Igreja do norte da África tinha sobre questão uma posição diferente da que era ensinada na Europa e ainda era tida por controversa. Nem por isso deixou de estar unida ao Papado. Ver Daniel Rops, A Igreja dos Apóstolos e dos Mártires, vol 1, Quadrante, São Paulo, 1988, p. 338, 339.
  2. Nota da Congregação para a doutrina da fé sobre vacinas. https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20201221_nota-vaccini-anticovid_po.html
  3. Roberto de Mattei é historiador e cientista político. É conselheiro do Instituto Histórico Italiano para a Idade Moderna e Contemporânea e da Sociedade Geográfica Italiana. Preside a Fundação tradicionalista Lepanto, com sede em Roma, dirige as revistas Radici Cristiane e Nova Histórica e colabora com o Pontíficio Comitê de Ciências Históricas. Em 2008, foi agraciado pelo Papa Bento XVI com a comenda da Ordem de São Gregório Magno, em reconhecimento pelos relevantes serviços prestados à Igreja.

Fonte: https://onepeterfive.com/roberto-de-mattei-qa-on-the-pandemic-and-the-vaccines/

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2 respostas para Roberto de Mattei: perguntas e respostas sobre a pandemia e as vacinas

  1. Grato pelo comentário, caro Edison. Às vezes, quando discordamos de alguém, de um grupo, de uma corrente, pensa-se que tudo o que dizem é errado. Passamos a ter uma visão maniqueísta. Por essa razão o claravalcister publica, de vez em quando, também artigos de pessoas sobre as quais temos ressalvas. Entende-se aí porque chegamos a colocar até mesmo a opinião de quem tem uma visão frontalmente oposta à nossa, como por exemplo, um artigo progressista ou esquerdista. É sempre bom termos uma visão mais ampla. No caso do artigo atual achei interessante ver de Mattei com uma posição que nos mostra que há tradicionalistas lúcidos em relação ao juízo sobre a pandemia e os modos de enfrentá-la.

  2. Surpreso em ler um texto claro e direto do historiador Roberto De Mattei, pesando bem os prós e os contras sobre assunto tão desgastante como esse do enfrentamento da pandemia, justo ele que não esconde de ninguém seu posicionamento “tradicionalista” com relação a História da Igreja.
    Parabéns aos editores de Claravalcister por nos permitirem o acesso a este artigo.

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