O EVANGELHO PERANTE A DESORDEM MUNDIAL – 1 –

 

 

Prefácio do Cardeal Ratzinger

 

Desde o início do Iluminismo, a fé no Progresso pôs sempre de parte a escatologia (1) cristã, e, finalmente, acabou por substituí-la completamente. A felicidade já não é esperada no Além, mas neste mundo. A atitude de Albert Camus, que, à palavra de Cristo “o meu reino não é deste mundo”, opõe resolutamente a afirmação “o meu reino é deste mundo”, é simbólica da disposição do homem moderno. Se, no século XIX, a fé no Progresso era ainda um otimismo genérico que esperava, da marcha triunfal das ciências, o progressivo melhoramento da condição do mundo e a aproximação cada vez mais acelerada de uma espécie de paraíso, já no nosso século (2) assumiu uma forma política. Por um lado houve os sistemas de orientação marxista – tentativa que manifestamente fracassou. Por outro lado, vemos, para construir o futuro, as tentativas que mergulham, de modo mais ou menos profundo, nas fontes das tradições liberais. Sob o título da Nova Ordem Mundial, tais tentativas tomam uma configuração cada vez mais definida; referem-se cada vez mais caracterizadamente à ONU e suas conferências internacionais, em particular às do Cairo e de Pequim, que deixam transparecer uma filosofia do homem novo e do mundo novo, ao quererem traçar os caminhos que aí conduzam.

Tal filosofia deixou de ser utópica, no sentido em que era o sonho marxista. Pelo contrário, é muito realista: determina os limites do procurado bem-estar a partir dos limites dos meios próprios para o alcançar, e recomenda, por exemplo, sem tentar justificar-se, que não deve haver o cuidado de tratar aqueles que já não têm produtividade nem podem esperar qualidade de vida. Além disso, deixou de esperar que as pessoas que se habituaram à riqueza e ao bem-estar estejam prontas aos sacrifícios necessários, mas, ao invés, recomenda processos de redução do número de convivas à mesa da humanidade, a fim de que, pelo menos, não seja ferida a pretensa felicidade já por alguns conseguida.

O caráter típico desta nova antropologia, concebida para fundamento da Nova Ordem Mundial, manifesta-se sobretudo na imagem da mulher, na ideologia do “Women’s empowerment”, proposta por Pequim. O fim em vista é a auto realização da mulher, que encontra os seus principais obstáculos na família e na maternidade. Assim, a mulher deve ser libertada sobretudo do que a caracteriza e lhe dá nada mais que a sua especificidade: esta é chamada a desaparecer diante de uma “Gender equity and equality”, diante de um ser humano indistinto e uniforme, em cuja vida a sexualidade não tem outro sentido senão o de uma droga voluptuosa, de que a gente se pode servir seja lá como for.

No medo da maternidade que se apoderou de grande parte de nossos contemporâneos, entra decerto, também, alguma coisa de ainda mais profundo: o outro é sempre, afinal, o concorrente que me leva uma parte de minha vida, ameaça para o meu eu e para o meu livre desenvolvimento. Deixou de haver, hoje, uma “filosofia do amor”; o que há é somente uma “filosofia do egoísmo”. Que eu possa enriquecer-me simplesmente com o dom; que eu possa encontrar-me justamente a partir do outro e através do meu ser-para-outrem – eis o que é recusado como ilusão idealista. Mas é precisamente aí que o homem se engana. Na verdade, na medida em que o desaconselham de amar (3), nessa medida o desaconselham de ser homem.

(continua na próxima semana)

Notas do Olivereduc:

  1. Escatologia: teol. Doutrina que trata do destino final do homem e do mundo; pode apresentar-se em discurso profético ou em contesto apocalíptico.
  2. Século XX.
  3. O amor que hoje em dia aconselham é exatamente o amor egoísta, o amor livre, no qual o outro é útil enquanto me dá prazer. É ver o outro como descartável.

 

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